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tudo o que eu queria dizer e disse



fico aqui pensando (e me sentindo pagado): que oportunidade de ouro teríamos perdido se o aranha ficasse calado.
um médico cuidando de um criança é um médico cuidando de uma criança. um médico branco cuidando de uma criança negra ainda é um médico cuidando de uma criança. o mesmo vale para um médico negro cuidando de uma criança branca. por que uma semelhante cena (ainda que por um absurdo levássemos em conta as variações) teria alguma coisa a ver com racismo ou serviria de prova de racismo ou não-racismo seja da parte do médico, seja da parte da criança?
ainda a propósito dos últimos acontecimentos, duas pérolas sobre a indiferença da sociedade com relação ao racismo: (1) "ela já não sofreu o bastante?"; e (2) "pegaram o grêmio pra cristo".
alguém me explique, por favor, o que significa toda essa onda reversa de compaixão para com a moça racista que chamou o goleiro aranha de macaco que, aliás, não é colorado...
o "sofrimento" dela parece causar mais espécie do que a humilhação e a violência experimentadas pelo jogador.
a equação é a seguinte: negros serem ofendidos com insultos racistas, dentro ou fora da "cultura futebolística", já é coisa conhecida, não devia causar tanto espanto; mas uma pobre menina moça, branca, ser punida por praticar esse crime, ah, isso, não é normal, coisa nunca vista, já é quase um despropósito.
brancos acham que têm o direito de sempre passar em branco, fazendo na entrada ou na saída. enchi o saco.
às vezes é preciso segurar no osso o chicote do linchamento, mas não pelo cabo como os brancos sempre o fizeram; é pedagógico que sintam um pouco da outra ponta do chicote.
deparei com um post de uma pessoa admitindo que, sim, a torcedora foi racista, mas (como atenuante à situação da guria) completou dizendo que "nada é mais racista do que cotas para negros". pano rápido.
a facilidade com que as pessoas se solidarizam com uns e outros; a naturalidade com que nos identificamos com a dor do branco; a tradição da mucama e do negro da casa grande (a ama de leite e a sombrinha protegendo a moleira do sinhozinho) como metáforas de nossa perversa genealogia afetiva infusa nas identidades brasileiras; a regra tácita que nos diz a quem devemos ceder a vez ou onde cada um tem o seu lugar, enfim, tudo isso serve de base para a compaixão seletiva e a meritocracia de fachada. agora um edulcorado sentimento humano cobra à sociedade colocar-se no lugar da torcedora racista, para que todos tenham alguma ideia do seu drama. enquanto isso o preconceito racial destrói e mata diariamente famílias e jovens negros. mas esse drama, esse linchamento, de fato, não atinge a casa grande e nem lhe diz respeito. não há balde de gelo capaz de mobilizar qualquer simpatia em relação à solução de tais problemas. os histéricos dizem que a moça será linchada, espero que isso não aconteça. espero que ela e os demais envolvidos sejam punidos. é, não deve ser fácil, mas como diz aquela canção: "agora guenta, coração!".
felizmente, a decisão do superior tribunal de justiça desportiva (stjd) excluindo o grêmio da copa do brasil revelou que não foi inspirada por argumentos invertidos como esses do senhor luiz carlos silveira martins. sei que ainda cabe recurso, a decisão não é definitiva, mas o escore de 5 a 0 dos auditores em favor da punição me parece muito mais significativo para a constituição de nossas identidades do que o outro de 7 a 1 que, não faz muito, levamos da alemanha.
os gremistas não precisam ficar com a autoestima deprimida, afinal, os atos racistas não depõem apenas contra o clube, depõem, sobretudo, contra todos nós que nos dizemos livres de preconceito, embora tudo ao redor afirme o contrário.
neste episódio de racismo contra o goleiro aranha, o debate desinteligente e sectário no interior da província faz parecer que tudo isso não passa de colorados perseguindo gremistas. todas as formas de preconceito se fortalecem com essa simplificação burra.
a maioria (clube e torcida em geral), ainda que não tenha insultado o goleiro, deve ser punida por seu silêncio; enfim, talvez isso faça com que todos se sintam responsáveis pela solução do problema, o racismo não diz respeito apenas a quem é vítima ou a quem é agressor, é um problema que envolve a todos direta e indiretamente; o azar não é e nem deve ser apenas do goleiro.
que seja leve mais essa pá de cal lançada sobre o gesto inócuo do jogador daniel alves que resolveu comer a banana do racismo.

Comentários

Sabrina disse…
O que ela fez está errado? Claro que sim.
O que estão fazendo com ela está errado? Sim também!
O Brasil entrou numa onda de justiça com as próprias mãos que acho que poderiam extinguir o Poder Judiciário e deixar que povo acuse, julgue e aplique a pena que achar conveniente. Exponham a cara, nome e sobrenome de quem cometeu o crime para o mundo inteiro. Tirem a pessoa de seu emprego e a condenem a nunca mais ter uma vida digna pq cometeu um crime...
Ronald Augusto disse…
seu comentário é falacioso, sabrina: se aceitarmos a premissa de que cada pessoa que comete crime de racismo supostamente "responderá pelo racismo no Brasil" como uma espécie de "cristo", então não haverá possibilidade de defesa a quem é vítima desse crime, a situação está completamente invertida, a vítima do crime não deve reagir usando a lei? não se trata de justiça com as próprias mãos, a torcedora não foi amarrada ao um poste, a mídia agiu como sempre age, o "problema" é que agora a corda arrebentou do lado de uma pessoa branca e de modo extremamente público, só isso. mas histórica violência pública sofrida pelos negros nunca comoveu ninguém, sabrina. tem gente que defende a moça baseado na realidade de que todos somos preconceituosos, mas o fato de todos sermos mais ou menos preconceituosos não pode significar a recusa á crítica ou à necessidade da lei. o esse argumento faz uma espécie de chantagem: "quem vai atirar a primeira pedra?". eu me disponho a fazê-lo, racismo é crime.
Etchichury disse…
Quem deve ser punido? Quem comete o crime. Quem cometeu? Uma parcela da torcida que pode ser identificada através dos diversos filmes feitos. E o clube? A punição com a exclusão da Copa do Brasil é injusta e demasiada. Se vamos aplicar essa punição ao Grêmio devemos também aplicar ao Santos em relação ao Campeonato Brasileiro pelas atidudes racistas contra jogador do Flamengo em jogo realizado na Baixada recengemente. E o Flamengo pelas atitudes racistas e homofóbicas contra os torcedores do Grêmio no último sábado (06/09/2014). Na realidade, vamos analisar os jogos ao longo do ano acho que excluiremos a grande maioria dos clubes por atitudes semelhantes de seus torcedores e não teremos mais qualquer jogo no restante deste ano.
Ronald Augusto disse…
ok, então não teremos mais jogos no restante do ano, se eu tiver de escolher entre uma coisa ou outra, fico com a exclusão de todos os clubes, todos os torcedores, todos os juízes que forem coniventes ou lenientes com o racismo. sem mais. infelizmente é assim, agora que a corda arrebentou do outro lado, o problema do racismo é denunciado e percebido "doa a quem doer". anedota perversa.

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