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PRA QUE POESIA NA ERA DA TÉCNICA?




PRA QUE POESIA NA ERA DA TÉCNICA?[1]


1 a pergunta propõe um falso problema.

2 essa indagação me parece complementar e secundária, não é essencial à poesia; a questão poderia ser apresentada, por exemplo, ao jornalismo impresso, ao teatro, ao ensino em sala de aula, às relações afetivas do nosso tempo de redes sociais. a “era da técnica” é uma instância do nosso território cultural.  a questão desenha um quadro em que a poesia se comporta quase como um glorioso anacronismo.
 
3 a poesia está sempre na alça de mira; de quando em quando volta a temporada de caça à poesia, ela sempre está sob luz suja dos interrogatórios; sempre tem alguém disposto a fazer o poeta objeto de uma pegadinha. a lógica da pergunta admite uma série de variações: pra que poesia na era do genocídio dos povos indígenas? pra que poesia na era da escravidão negra levada a efeito pelo poder colonial? pra que poesia na era do extermínio judaico realizado industrialmente pelo nazismo?

4 a pergunta pra que poesia na era da técnica? parece apostar na velha antinomia entre razão e sensibilidade ou entre o útil e o fruível: pra que serve o sensível na era da racionalidade e da funcionalidade científicas? hoje sabemos que há muito mais interações entre esses termos do que supúnhamos.

5 a questão pra que poesia na era da técnica? sugere que a poesia segue indiferente ao – ou se preserva desse –  mundo que a cerca; ou ainda, que a técnica talvez almeje varrer a poesia do mapa, do mundo conhecido. como se o poeta fosse um santo que pisasse os astros distraído, e o que é pior: que essa distração figurasse como a grande resposta a uma era tão perversa como nossa, onde o sensível seria processado pela tecnologia na perspectiva de transformá-lo em uma pasta rala.

6 mas não se trata nem de uma coisa nem de outra. não podemos confundir uma certa negatividade da poesia em relação ao mundo, um desejo de pô-lo em cheque, com uma indiferença decadentista; a poesia se relaciona intrinsecamente com o mundo, isto é, se relaciona de forma crítica com o mundo em todos as suas dimensões.

7 podemos afirmar que vivemos em uma era não poética? por outro lado, nunca houve uma era poética (ah o passado mítico da humanidade e da cultura...) e sempre houve eras poéticas, no seguinte sentido: seria um exagero afirmar que tivemos uma era essencialmente poética ou da poesia, mas, por outro lado, parece razoável afirmar que no seio de todas as eras (e suas diversidades tecnológicas) a poesia sempre esteve presente e servindo para alguma coisa.

8 a pergunta propõe um falso problema. pano rápido.





[1] Tema de um debate ocorrido durante o evento Feira Além da Feira, no qual participei ao lado de Laís Chaffe, Sidnei Schneider e Diego Petrarca. Dia 05 de novembro de 2014.

[2] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente aqui no http://www.sul21.com.br/jornal/




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