Pular para o conteúdo principal

Um griot que canta e conta: todos os orikis dançam




Sempre que me perguntam: qual a sua expectativa em relação ao papel do afrodescendente em nossa sociedade, hoje e no futuro? Meu primeiro impulso é responder esboçando um panorama pessimista, porque o Brasil, historicamente, dá de ombros a essa questão. No entanto, observando a coisa por outro ângulo, sou obrigado a considerar situações que, de algum modo, têm a capacidade de fazer com que minha expectativa com relação ao devir seja das melhores.
Não resta dúvida de que vai demorar um pouco até que sejamos respeitados de maneira que isso não soe como um favor que nos fazem, mas estamos num caminho sem volta. Por exemplo, o uso da internet tanto como fórum de debates como de denúncia será cada vez mais necessário. Não faz muito tivemos provas disso, refiro-me à infeliz campanha publicitária que recentemente tentou maquiar mais uma vez Machado de Assis como um sujeito branco.
Enfim, sempre fomos e seremos, nós negros, importantes para a sociedade brasileira, só falta que isso seja reconhecido. Mas por detrás desse “só falta...” há toda uma história trágica que deve ser levada em conta em nosso movimento de exigir sem concessões tal reconhecimento.
Pois bem, a leitura de Um griot e dois orikis de Lau Santos é um desses acontecimentos que consegue instaurar um intervalo robusto em meu pessimismo relativamente ao quadro do preconceito contra o negro. E Lau Santos faz isso apelando tão-só ao discurso estético, isto é, sem marcar passo na retórica dos clichês de uma combatividade de fachada. Estes orikis, por seu turno, tocam com extrema sensibilidade em pontos centrais do contemporâneo pensamento negro brasileiro, mas sem ferir a própria autonomia compositiva sobre a qual equilibram o jogo poético do corpo e da linguagem.
E não poderia ser de outro jeito, inclusive porque, Lau Santos, autor-griot desses orikis, é um artista no sentido mais amplo da palavra, artista que se interessa por – e participa de – discussões culturais, sociais, existenciais, políticas e estéticas. A participação de Lau Santos se dá tanto nos dilemas relativos ao homem, quanto nos dilemas que concernem às artes. Não obstante a empreitada da obra em apreço se referir nomeadamente ao âmbito da – pausa para a palavra a seguir – arte, ainda vemos, aqui e ali, críticas e intervenções que insistem em colocar a criação artística a serviço de “causas e compromissos históricos”, e no que concerne às experiências que tomam como ponto de partida os signos afro-brasileiros, grosso modo, persiste a cobrança de uma fidelidade de fundo ao criador. Pode-se, todavia, argumentar que tudo o que vem após a palavra arte, isto é, “de matriz africana”, “negra”, “de gênero” etc., é que dá assunto a essa espécie de “fogo amigo”. Talvez. Na verdade, tudo que vem depois da palavra supracitada não é irrelevante, mas apenas secundário. Infelizmente, as explicações inessenciais acerca da coisa acabam por substituí-la. Nesses debates purgativos tendemos a ficar com a explicação e descartamos o objeto artístico em si mesmo. Mas Lau Santos está atento a essa falácia: seus orikis são um discurso estético, mas em momento algum se prestam ao anacronismo da “arte pura”. Lau concebe sua obra em atenção a um traço fundamental a todas as formas artísticas, a saber, seus orikis constituem esse modo de linguagem que pelo viés da sugestão propõe uma alternativa (crítica, mercê do simples contraste) ao mundo autodeclarado branco.
Um detalhe que gostaria de ressaltar em Um griot e dois orikis de Lau Santos é o de que, não obstante ser um conjunto de peças narrativas – ou seja, objetos verbais que contam histórias, fiam-nos uma prosa gingada –, em nenhum momento, o erê que constitui a essência do autor, perde de vista que ele também deve cantar histórias. Recuperando o traço característico da oralidade presente nas remotas tradições do fazer poético, traço comum a quase todas as culturas, Lau Santos não distingue entre cantar e contar. Os orikis se materializam em ritmos; em uma música mais mítica do que épica. Lau se deixa levar mais pelos biografemas (sua subjetividade transcriada) do que pela história dos compêndios (as narrativas sobre os transes da diáspora africana). Exemplos dessa síntese entre cantar e contar onde são perceptíveis reiterações, rimas internas, assonâncias: “Era assim que aqueles homens do mar, guerreiros da vida, brincavam de soldado, brincavam de rei de uma nação. Tocavam os tambores no ritmo do coração e dançavam com os seus irmãos”; “...quando olhamos para o mar, ali, pois ali, bem ali depois daquela linha do horizonte...”; “Ele andava morro acima, morro abaixo, morro abaixo, morro acima tocando seu instrumento”; enfim, mais trechos poderiam ser citados, mas esse pouco já me parece substantivo para sublinhar a virtude da conjunção do conto e do canto presente neste feixe de orikis rentes à razão sensível da molecada.
Por fim, deixando ao leitor o prazer de outras descobertas e significados aqui contidos, saúdo a publicação dessa obra treme-terra levada a cabo por Lau Santos com a alegria (amor) e a esperança (humor) de um orixá velho que só ele sabe como performatizar. Xirê, meu irmão Lau. Verdadeiro griot treme-ilha.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

TRANSNEGRESSÃO

TRANSNEGRESSÃO 1              No período em que morei na cidade de Salvador, Bahia, final da década de 1980, fui procurado, certa ocasião, por uma estudante alemã que desembarcara no Brasil disposta a realizar um minucioso estudo sobre a literatura negra brasileira. A jovem estudante demonstrava grande entusiasmo diante de tudo o que se lhe apresentava. Antes de Salvador havia passado por São Paulo e Rio de Janeiro, onde conheceu, respectivamente, o genial Arnaldo Xavier e o glorioso Ele Semog. Posteriormente, estes poetas encaminharam-na a mim e a outros escritores também residentes em Salvador. Tivemos, se bem me lembro, dois ou três encontros de trabalho envolvendo entrevistas e leituras comentadas de poemas. Numa dessas reuniões, apresentei-lhe sem prévio comentário um poema caligráfico-visual. A jovem alemã, cujo nome prefiro omitir, se pôs a examinar e re-examinar aquelas traços opacos de sentido, e que, de resto, não ofereciam senão ...

oliveira silveira, 1941-2009

No ano de 1995 organizei a mini-antologia Revista negra que apareceu encartada no corpo da revista Porto & Vírgula , publicação — infelizmente hoje extinta — ligada à Secretaria Municipal de Cultura e dedicada às artes e às questões socioculturais. Na tentativa de contribuir para que a vertente da literatura negra se beneficiasse de um permanente diálogo de formas e de pontos de vista, a Revista negra reuniu alguns poetas com profundas diferenças entre si: Jorge Fróes, João Batista Rodrigues, Maria Helena Vagas da Silveira, Paulo Ricardo de Moraes. Como ponto alto da breve reunião daqueles percursos textuais, incluí alguns exemplares da obra do poeta Oliveira Silveira. Gostaria, agora, de apenas citar o trecho final do texto de apresentação que à época escrevi para a referida publicação: “Na origem todos nós somos, por assim dizer, as ramificações, os desvios dessa complexa árvore Oliveira. Isto não nos causa o menor embaraço, pelo contrário, tal influência nos qualifica a...

o falso problema de ugolino

A arte da invenção verbal não é outra coisa senão uma scriptio defectiva (abstrações, recortes, rasuras, reduções sintáticas, etc.) que se limita complementarmente com uma - aparente - scriptio plena . Vale dizer, o fulcro, a razão de ser do poema não se estrutura em torno à reprodução cerrada de uma pretensa verdade referencial presentificada através de uma linguagem sem rasuras. A propósito desse tema, Jorge Luis Borges escreveu um penetrante ensaio intitulado “O Falso problema de Ugolino”, incluído em Nove Ensaios Dantescos (1982). Nesse breve ensaio, o escritor argentino procura demonstrar que a polêmica travada entre diversos comentadores da Commedia a respeito do episódio em que Ugolino supostamente devora, vencido pela fome, os cadáveres dos próprios filhos e netos (Inferno, XXXIII), não passa de inútil controvérsia. Borges sustenta a tese de que deveríamos propender a uma análise estética ou literária do episódio em questão. À pergunta de índole historicista, Ugolino com...