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a cicatriz, o silêncio

Falar em versos a cicatriz, o silêncio
Ronald Augusto[1]

Se não estou equivocado Na língua da manhã silêncio e sal é o terceiro conjunto de poemas de Juliana Meira. O primeiro foi Poema dilema (2009) e alguns anos depois surge Poema pássaro (2015). Entretanto, acho importante lembrar aqui uma experiência realizada pela poeta no campo das alternativas de suporte para a poesia impressa, inclusive porque esse fato reforça uma percepção que formulei sobre sua poesia a partir da leitura do livro ora apresentado – logo adiante me deterei um pouco mais sobre este tópico. Agora, menciono apenas que em uma das abas do livro Poema pássaro a tradicional nota biobibliográfica refere de forma bastante lacônica que em 2008, na Coleção Fogo do Verbo, a poeta publicou seus poemas em caixas de fósforos. Ponto. O negaceio dessa notícia que, por assim dizer, nos informa sem informar muito, me parece de grande interesse.
Enquanto isso, não custa fazer com que o leitor note neste trecho do percurso poético de Juliana Meira, configurado no livro em apreço, a sutil eficiência com que a dinâmica entre o fortuito e o forçoso são mobilizados pelo apetite compositivo da poeta, e de tal maneira que se complementam e se chocam criticamente em vários poemas da obra. Isto é, já no título, esse corpo a corpo entre o furtuito e o forçoso, o indeterminado e o determinado, se revela de modo decisivo e incisivo, à maneira mesmo de uma incisão, espécie de baixo relevo. Na capa o leitor depara: Na língua da manhã silêncio e sal. Em certa medida o título é indicial, em outras palavras, sendo também um paratexto, indica o rastro, a senha, a intuição de algo ao leitor – principalmente ao leitor experimentado. Indica que o autor do livro é, de fato, um poeta, quer dizer, um sujeito que fala não por frases, mas sim por versos: a cadência que se projeta sobre a sentença. Certo, o título é interessante por uma série de razões (a metáfora “língua da manhã”, o oximoro língua-fala/silêncio), mas a razão que me parece mais importante diz respeito ao fato de que o título se constitui em um perfeito decassílabo heroico (acento na 6ª sílaba métrica).
É irrelevante saber se Juliana Meira pensou ou não o título nessa perspectiva do metrônomo, desentranhando à frase um verso de dez sílabas. O ponto é que se aceitarmos o indecidível da situação, então a tese do jogo entre o fortuito e o forçoso, enquanto chave interpretativa de sua poesia, acaba por ser confirmada. Além do mais, o verso-título de Juliana Meira reforça uma intuição segundo a qual essa sorte de legenda não tem de ser necessariamente o anteparo explicativo do poema, em muitos casos o título pode se integrar ao conjunto dos versos, isto é, sua carga de sugestão pode ter voltagem semelhante à coesão de versos que ele apenas precede. E um título em relação ao livro pode ter as mesmas características. O verso Na língua da manhã silêncio e sal que Juliana Meira usa para nomear seu conjunto de poemas é rico também porque estabelece um contato indecidível e distante entre a promessa e o que se cumpre efetivamente, contudo, não os separa em definitivo. Trata-se de uma cifra.  Esse modelo compositivo no qual é imprescindível em sua resolução certa dose de incompletude, de elipse, marca a estrutura desse conjunto de poemas, potencializa conjunções e disjunções. Exemplo de uma disjunção: o título arrancado em decassílabo não antecipa, porém, a figura da maior parte dos metros que vão aparecer nos poemas, porque, grosso modo, o metro que prepondera nos versos não passa muito além da redondilha maior, isto é, eles têm em torno de seis, sete sílabas, sem considerar, é claro, o uso do enjambement. Vejamos:

que silêncio é este
que me atravessa o crânio

[...]

os pássaros da manhã
em reunião poderosa

[...]

é possível ver
no futuro texto

a funda cicatriz

A “funda cicatriz” é uma excelente metáfora para essa capacidade que o texto de Juliana Meira demonstra para o registro do precário sem aparente mediação, como se a beleza das coisas pudesse existir sem a nossa intromissão. Os poemas de Na língua da manhã silêncio e sal se comportam como fotogramas do acaso, do trânsito (a observação em travelling) e do transitório (o observado, o emoldurado). A cicatriz (o precário, o acidental) que se fixa no corpo do texto. Um instantâneo sempiterno: “o inço vara os trilhos”. Juliana Meira tem a noção precisa do tempo e do feeling necessários para o momento em que sua autoria precise revelar-se (intrometer-se) sob o aparente anonimato do enquadramento imagético. Em vários de seus poemas não é apenas a linguagem, ela mesma, que fala através deles. Também não é propriamente a pessoa empírica Juliana Meira que fala através dos poemas: é um ego scriptor que absorve o chamado eu enunciador. Juliana se deixa viver, para que o ego scriptor leve a feito sua poesia, e essa poesia talvez justifique a pessoa empírica que, finalmente, assina Na língua da manhã silêncio e sal.

por isso este silêncio
pavoroso
estas mãos ardendo

No poema de abertura do livro, cujo primeiro verso diz “ando com aqueles”, percebe-se o eu implícito, alusivo, abrindo caminho através da tópica do “cerrar fileiras”, do coletivo, com o fito de alcançar a volição individual. A poeta começa se comprometendo com “aqueles cujos pés tilintam”, se aproxima dos “que não fazem ruído nem faíscas”, mas, no limite do caminho, “quando o abismo principia” o ego scriptor “pisa o silêncio cíclico” em salto solitário. O abismo da página em branco parece requerer o solilóquio. Neste poema um eu enunciador ainda se deixa perceber pela exigência do contraponto, no entanto, em muitos poemas o que se impõe mesmo é a opção por um eu in absentia. Com efeito, em cerca de um terço da totalidade dos poemas reunidos em Na língua da manhã silêncio e sal podemos constatar a dissolução do eu que visa afirmar-se. Tal característica explica em parte o estilo fortemente alusivo dos poemas de Juliana, ou seja, o assim chamado eu enunciador é constantemente elidido ou mal se revela. O que está em jogo é o sinal de menos – ou os símiles do menor –, mas não necessariamente a partir do clichê do menos é mais. Antes como uma disposição tanto para o pequeno – um desejo pela contenção do pequeno e pelas formas breves –, quanto pela simpatia em relação à categoria do poeta menor em contraste crítico com o poeta épico, o poeta “de fôlego” dos “grandes temas”.
Entretanto, Juliana Meira, seguindo a lição de Manuel Bandeira, se empenha, mas sem se exaurir de todo, na transfiguração da dimensão depreciativa associada ao qualificativo “menor”. Aqui recupero a informação indicial do experimento relativo aos poemas na caixa de fósforos, solução dessacralizadora de certa norma que impõe ao texto a fôrma do livro enquanto fetiche e objeto de consumo. Algumas cifras do pequeno, do menor (enorme), ao apetite do leitor: “a funda cicatriz/ do recomeço” (outro decassílabo heroico, agora considerando o enjambement); o silêncio, misto de vetor semântico e filosofema persistente no livro; as formigas operosas sobre um inseto morto; os meninos jogando bola no bairro; “os mil milagres no mínimo...”. Ao mesmo tempo, Juliana Meira também procura minorar os efeitos do poema. Eles não são exagerados quando se considera a vaga noção do poeticamente correto. Para a poeta a dimensão/extensão do poema é inversamente proporcional à sua significação e aos seus atributos poéticos; quanto menor o poema de Juliana Meira, tanto mais provável é a capacidade de conter um conjunto amplo de sentidos concentrados em sua forma. O lema Dichten = condensare de Ezra Pound deve ser evocado sem sobressalto porque, sim, é o caso aqui[2].
A condensação intensifica a ambiguidade poderosa do poema, por esta razão Décio Pignatari diz que um poema fala de tudo e de nada ao mesmo tempo. Não seria despropositado aplicar a mesma afirmação para Na língua da manhã silêncio e sal. A constante elisão de linguagem da poeta Juliana Meira dá a cada poema essa caraterística de deriva conotativa, o poema pervaga por paisagens, cenas e formulações discursivas sem se fixar em parte alguma. Observo ao leitor que compreendo isso como um traço virtuoso da poeta. Por outro lado, “falar de nada” não significa um elogio à pureza do vazio – tema do simbolismo enquanto clichê – e sim uma determinação construtiva levada a cabo de tal de maneira que as palavras do poema sugiram certas ideias ou imagens mais pelas relações formais e materiais (hesitação som/sentido) que elas entretecem do que pelo sentido dicionário com que são apreendidas pelo senso comum. Aquilo de que não se pode falar, ou o que cabe no silêncio – o foco no diminuto, no quase nada, evocado nesses poemas de Juliana Meira –, significa sua própria dicção enquanto objeto estético, e, por sua vez, cada poema presentifica iconicamente o que não pode ser dito, esse falar de nada e de tudo a um só tempo.



[1] Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com

[2] No ABC da Literatura Pound narra que ao folhear um dicionário alemão-italiano descobriu que “Dichten” é o verbo correspondente ao substantivo “Dichtung” (poesia), por sua vez o lexicógrafo traduziu-o pelo verbo italiano “condensare”. A partir disso Pound chegou à sua definição de poesia como concentração de linguagem.

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