Nomes à
margem: um renovado eco épico
Ronald
Augusto[1]
Agora que o leitor se encontra entre as capas
de Nomes à margem podemos
adiantar-lhe algo: esse conjunto de poemas revela um poeta com um enorme
apetite pela narração, pela cadência da prosa. Túlio Henrique é um poeta que se
decide pelo franco prosear. A formação acadêmica em História permite a Túlio
Henrique apresentar-se ao leitor como um poeta historiador. Não se trata de uma
contradição entre termos. Os limites entre a poesia e a história (prosa) podem
ser elididos, felizmente. Com efeito, Nomes à margem opera uma ultrapassagem das convenções tanto da
história enquanto narrativa, como também das convenções da poesia quando
interpretada apenas na pauta da subjetividade. Se a poesia se mostra aparentemente
livre para ser sacudida pelo impulso imagético, a prosa, por sua vez, pode ser
vertiginosa e cair em uma espécie de torneio, de embriaguez. Por outro lado,
nem uma nem outra deixam de ser significantes. Quando Túlio Henrique se
autorretrata como um “poeta historiador”, esta informação, de alguma forma,
nos incita a situá-lo como um espécime singular de poeta épico.
Grosso modo, a épica pode ser definida como a
poesia que contém história, contudo, a poesia de Túlio se interessa
radicalmente pelo sinal de menos dos cenários épicos, se afeiçoa por aquilo que
resta às margens da experiência em sociedade.
É como se Túlio fosse um Homero cuja empatia estivesse menos relacionada
a Odisseu do que aos seus remeiros. E os remeiros de Túlio são essas vidas negras
cujo canto transfigura em objetos verbais, seus transes entranhados ao pano de
fundo dos desrespeitos racial, social e sexual.
Esses
seres-nomes que a custo são enquadrados nas fotografias das histórias privadas
legadas à posteridade e à indiferença. Histórias e estórias que o poeta negocia de
forma intersubjetiva com o fruidor-leitor.
Nomes à
margem oscila entre as fronteiras do relato oral e da transfiguração
rebuscada da língua de todos os dias. A sensibilidade pelo poético começa em
Túlio desde o momento em que vivencia o eros
háptico pelos livros. Do mesmo modo, o leitor reconhecerá sua capacidade de
escuta crítico-seletiva para as conversas perversas e à boca pequena da vida
besta, a vida menos simples do que dolorosa de seus personagens. A língua
pedestre e a vida de todos os instantes traduzidas ao idioma de alguns
instantes: seus poemas. A vida invisível de pessoas negras, essa vida tida e
havida como subalterna: o canto e o conto interrompendo seu desenrolar. Essa
interpolação no interior da qual o leitor-intérprete consegue encapsular uma
imagem da experiência de modo a considerá-la profundamente.
E entre
o desenho das ruas
e o
limite das casas
há muros
que nos norteiam:
e bons
bocados de vãos.
Túlio Henrique recupera o eco da voz épica, mais
na perspectiva de um ganho estético do que de um ponto de vista do orgulho da
influência. Em Nomes à margem o poema
narrativo se apresenta com sua força de mito e ao mesmo tempo se fragmenta em
mosaico, espelho estilhaçado onde as identidades se miram destroçadas. De outra
parte, não há como deixar de considerar o influxo de uma voz dramática. Essa
voz representa o mecanismo utilizado pelo poeta com vistas à criação de um
personagem que tem seu próprio discurso e que, portanto, tem a prerrogativa de
afirmar coisas com as quais o poeta ele mesmo jamais se comprometeria. O poeta
inventa uma máscara que pode ser afivelada, isto é, interpretada por quem quer
que seja, pois, afinal de contas, ainda que o personagem tenha algo dele, isto
não significa que ambos se confundam em todas as situações possíveis. Assim,
implicado nesses dilemas e nesse odi et
amo relacionados ao preconceito — e tendo de se haver com eles de forma
estética —, Túlio Henrique afivela sobre o próprio rosto as personae negras sobreviventes do
cotidiano racismo à brasileira. O racismo, às vezes disfêmico, às vezes
explícito, nos modos de nomear a pessoa negra e sua experiência com os demais.
As falas e os conceitos emitidos através delas se estruturam a partir do preconceito,
essa voz sorrateira a configurar o mundo interior de negros e não-negros.
Todos, de uma maneira ou de outra, chapinhamos nessa pasta espessa e
paralisante em que cada passo esboçado dura o tempo sem fim do pesadelo. Por
exemplo, no poema “Margens” somos apresentados ao personagem Francisco. Ele
“era um moleque engraxate”; “era uma dessas bichas pretas, vadias”. Ficamos
sabendo que graças a “seus muitos talentos” seus clientes chupavam-no “inteiro
na noite da praça”.
A sociedade através de uma teia de discursos
violentos se comporta como um espaço sacrificial destinado àqueles que,
intencionalmente ou não, escapam ao seu controle. “Francisco tinha voz aguda e
cheirava mal, disseram” (grifo meu).
Quem está oculto sob essa terceira pessoa do plural? Para que o poema em causa
alcance seu efeito comunicativo e sugestivo, é essencial que cada leitor se
sinta implicado nessa notícia derradeira, enunciada assim com a maior
naturalidade do mundo, reveladora de uma indiferença culposa. Os poemas de
Túlio Henrique não pretendem mimar o voyeurismo do leitor; o leitor não é
preservado de nada, o véu se rompe a cada verso de Nomes à margem; o leitor precisa se comprometer com a fábula e a
forma. Tanto nesse como em muitos outros poemas da obra, o leitor é incitado a participar
do canto e do conto feito um personagem implícito. Em suma, todos e cada um de
nós reiteramos que Francisco tinha voz aguda e cheirava mal. Devemos nos
reconhecer, inclusive, nas imposturas e violências que denunciamos.
Nomes à
margem, não obstante o contato estreito que mantém com algumas camadas da
realidade presente, traz à tona da linguagem o ponto de vista do narrador, ele
não é um mero acidente na direção do que deve ser narrado, nem um copista de
depoimentos. O poeta historiador perturba o verismo do testemunho: alguns
personagens refazem o mesmo itinerário de desejo do escritor: no que se refere
aos textos e discursos as alusões a livros e leituras indicam que o ficcional
se projeta sobre o vivido recriando-o. Sirvam como exemplo essas passagens.
Quando
criança minha mãe lia para que eu adormecesse. [...] uma coleção de livros
muito colorida, em papel cartão supremo; as capas eram estampadas com desenhos
contendo cenas [...] em alto relevo, e na contracapa havia faixas verticais
largas que imitavam algumas cores do arco-íris. [...]A oralidade conjugada a
leitura daquelas imagens presentes naqueles livros era muito além de um momento
de contemplação e certeza de um existir, era sentir muito além do que
deveria...
(...)
...uma
mulher grande e bela, preta, com a palavra entranhada entre os dentes alvos
[...] apesar de ter visto o romance num livro sobre a mesinha de centro da
luxuosa sala, nunca aprendeu ser amada
(...)
...sentira
que deveria ser de prata a palavra que pudesse sair da tua boca...
O estilo meio alambicado e precioso de alguns
poemas de Nomes à margem enriquece os
efeitos estéticos ofertados ao leitor. Túlio Henrique não chega a exagerar no
uso desse dispositivo, sua ocorrência é constante embora não seja invasiva. É
um dado relevante, espécie de hýbris necessária
a esse poeta historiador que se indispõe com a épica tradicional, pois ela
promove a coincidência entre os conceitos do bom e do rico. Ainda que a épica
de Túlio Henrique vá no sentido contrário, isto é, seus poemas falam do “Feio”
(na perspectiva de Cruz e Sousa), do “Bicho” (na perspectiva de Manuel
Bandeira) e do sinal de menos relativamente aos estratos sociais, por seu
turno, seus instrumentos discursivos e retóricos são, com frequência, elevados
e ao mesmo tempo atentos ao linguajar mais chão. Para a retranca do preconceito
tal “ousadia” representa a hýbris do negro que inspeciona território que
lhe era vedado, ou seja, o controle eficiente da linguagem. Seu apetite de
poeta o põe sempre atento a vocábulos e formulações discursivas menos usuais,
tais como: cinético, aquosa, heterotópico, invólucros,
Eósforo, helianto, ilibada. E há
construções do tipo: “há de se redefinir desenhos, como deveras recontar
torrentes”, ou “são apenas um tanto de açucares/ são apenas quinhões e
conchavos/ são senhores... são senões” e, por fim, a estranheza saborosa desse
terceto de que gosto muito:
Este que
partiu para longe,
a
permitir que em mim fincasse
um’alma
doca
Cabe apresentar ainda um par de palavras sobre
algumas senhas ou dados obscenos (na perspectiva do senso comum) contidos em Nomes à margem. Obviamente esse traço
diz respeito à autonomia criativa, isto é, tem a ver com uma espécie de determinação
do artista em fazer uma sondagem radical nos âmbitos mais secretos do desejo
interdito do humano, visando com isso uma compreensão mais desanuviada
relativamente àquilo que a vida normal e cotidiana entende como indecente e
repreensível. Túlio consegue dar a muitos poemas essa agudeza: o
constrangimento virtuoso potencializado através de uma linguagem com a qual o
leitor tem de se haver de maneira não tutelada. Se esses elementos
eventualmente censuráveis ainda operam um ferimento no meio da página defendida
pela brancura, isso indica com perfeição como a figuração de tais assuntos
exerce uma crítica importante nas convenções seja da sociedade, seja do sistema
das artes e sua visão estética. Túlio Henrique se apropria desses incômodos
sociais de um modo sutil, mas sem deixar de ser direto sempre que necessário.
Finalmente, na direção contrária
à suposta pureza do espaço interior, espiritual, onde a autonomia discursiva
deveria reinar, a ideologia, aí também, exerce seu constrangimento. Até certo
ponto, a literatura atual procura atender às demandas da dinâmica social em
curso, dinâmica votada a reparar injustiças e exclusões, já não mais de um
ponto de vista politicamente correto, mas, infelizmente, a partir de sua versão
diluída, a saber, ratificando uma espécie de etiqueta da boa convivência
étnica, multicultural, e, ainda, entre os gêneros. A poesia de Túlio Henrique
denuncia a seu modo esse processo de edulcoramento ou de negação dos conflitos.
A negação desses transes se deposita nos corpos sequestrados de seu desejo e
prazer, contudo, Nomes à
margem corajosamente os ressuscita e concentra em seu poder linguagem em
vista de um interlocutor renovado e disposto à escuta do outro.
[1] Ronald Augusto é poeta,
músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya
(1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No
Assoalho Duro (2007), Cair de Costas
(2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com
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