Cais
do alheio: uma forma de educação sentimental
Ronald
Augusto[1]
O conjunto Cais do alheio de Deisi Beier apresenta
indicativos de que um dos seus vetores temáticos e estéticos gira em torno da
dialética dos espaços aberto e fechado. As duas partes em que se divide a
presente obra, se não nos dão total certeza a respeito, têm ao menos a qualidade
de nos sugerir isso, pois podemos supor que as seções “Enseada” e “Mar aberto”
figuram mais ou menos bem e respectivamente como os sentidos poéticos relativos
às formas do fechado e às formas do aberto. Outra analogia interessante diz
respeito ao gênero correspondente a cada seção. Ainda que, nos dias correntes,
a categoria de gênero literário esteja bastante desprestigiada – as construções
híbridas parecem ser mais recomendáveis e toleráveis –, é curioso observar que
“Enseada” (metáfora em sentido lato às formas do fechado) reúne um conjunto de
poemas, isto é, a mancha gráfica na página nos dá a entender de que se trata de
poemas ou de poesia, vale dizer, essa linguagem de alguns instantes. Por sua
vez, “Mar aberto” (metáfora em sentido lato às formas do aberto) se espraia em
linha de prosa, não obstante a ausência de maiúsculas nas sentenças, estilema
naturalmente associado à poesia desde o alto modernismo até agora. Nesta seção,
em termos indiciais estamos, portanto, imersos na prosa ou, se quisermos ver a
coisa de um modo mais complexo, podemos afirmar que a poeta nos propõe
inventivos simulacros narrativos.
mania de falar descalço, como se a boca tocasse a
terra e tudo lodo, lama, insistindo em deixar marcas.
tantas histórias e ainda não achei a minha.
tantos poemas recitados à indiferença congênita.
Antonio
Cândido, no ensaio “O albatroz e o chinês”[2], formula
de outra maneira (ainda que o crítico vá no mesmo rumo de reflexão) os tópicos
esboçados acima. O ensaísta argumenta que a expressão literária ou poética
implica uma “dialética (dilema) do espaço aberto e do espaço fechado”, que, por
sua vez, apontam para um caminho que se bifurca em duas direções, a saber, numa
o “desejo de representar o
mundo” e, noutra, o anseio pela “invenção de um mundo
autônomo”. É importante frisar que no caso da poesia de Deisi Beier, esses
movimentos não se revelam apenas antitéticos, mas principalmente
intercambiáveis, isto é, o mar aberto participa da enseada e a enseada se
expande em mar aberto sempre recomeçado. Se quisermos passar do metafórico para
a observação dos procedimentos de linguagem, vamos notar análogo entrelaçamento.
De um lado, a prosa, talvez em vazante, irriga os poemas da seção “Enseada” e,
por outro lado, em “Mar aberto”, a poesia, a montante, provoca uma tormenta no
andamento da prosa.
recolho os restos das conversas
e umas tantas cismas
e faço sala pra esse silêncio oceânico
De
outra parte, os versos acima aludem a uma sorte de grafia “do junto” e, ao
mesmo tempo, à rasura da separação que compõem também um outro ideograma a
informar a estrutura estético-sentimental de Cais do alheio. Transversalmente ao dilema imagético da enseada e do mar aberto pulsa a expectação amorosa e seu jogo de contato e perda,
de comunicação e incomunicabilidade, de enlace e desenlace, de desejo e morte.
Em outras palavras, Cais do alheio
nos conduz à beira da tópica catuliana segundo a qual, com relação aos nossos
afetos, murmuramos um contínuo e renovado odi
et amo. Entre o eu e o você,
vozes lírico-dramáticas de muitos poemas de Cais do alheio, o solilóquio, não raro, se impõe e se interpõe com
todo seu poder de tradutor do impreciso relativamente aos transes do amor.
Falar para si mesmo (o investimento do poema) como possibilidade de falar ao
outro: essa a estratégia discursiva do desejo agora convertido em arte. O eu e o você entranhados aos poemas de Deisi Beier parecem formar uma
parelha malgrado o amor mesmo que a justifica. Em alguma medida, não há
chance para que o amor e sua aspereza possam redimi-los.
há sempre mais boca do que o riso que lhe cabe
e uma surdez diante do óbvio
há quem chore
e quem silêncio
ou espanto
Talvez
a remissão só se efetive mesmo ou venha através da poesia de Cais do alheio, de seus poemas. Dizem que a poesia é a educação dos cinco sentidos.
Pode ser. Entendo que a poesia é também uma forma de educação sentimental, porém não no sentido normativo. Em Cais do alheio essa espécie de educação
dos sentidos ligados ao eros se
efetiva em paralelo a uma arte da desilusão. Em alguma medida Deise
Beier se compromete com a ideia de que a criação artística surge à superfície
de nossa percepção tanto para nos desiludir acerca de nossas aspirações, quanto
para interpor uma suspensão no movimento às vezes inercial de nossas
experiências afetivas.
A experiência amorosa
transfigurada em Cais do alheio vai à
contrapelo, por exemplo, da célebre canção “He loves and she
loves” (George e Ira Gershwin) que constrói uma imagética do amor como um bem
supremo, o que é buscado por ele mesmo. Para os irmãos Gershwin o amor não é um
acidente no caminho para algo; tudo a que os amantes se sujeitam é em vista do
amor. O amor é bom, um bem. Tanto que todos os seres vivos, como diz a canção,
se mobilizam indo em sua direção: “whispering
trees love”. Quem ama é bom e se torna parte da harmonia essencial
subjacente a todas as coisas. A parelha amorosa é a metáfora grandiosa e humana
desse bem. Não se trata nem de naturalismo, nem de escolha, mas de uma espécie
de graça.
Feliz ou infelizmente não
é este o conceito de amor que surte da leitura de Cais do alheio. Para Deisi Beier o amor é uma construção, tem algo de
voluntário e de condenação, um movimento estético-crítico em direção ao objeto
do desejo. O eros, transfigurado na tensa
parelha amorosa, é quase como uma obra de arte a ser admirada e conquistada. Amor que mantém estreita relação com o fazer
poético. Amor corporal em situação análoga à “luta vã” tematizada pela poética
drummondiana. A cada manhã e a cada livro, Deisi Beier recomeça essa luta
desejante, na perspectiva de renovação das formas e dos signos representativos
desta experiência fundamental em nossas vidas.
o cheiro da pele
ainda habita o tecido
morrer demora a
terminar
rasgo as costuras
que sustentam minha inteireza
e pelo avesso,
coleciono remendos vergonhosos
Entretanto, o modo de
abordagem da tópica do odi et amo
escolhido pela poeta, faz com que Cais do
alheio não resulte em um conjunto engessado por um único interesse. Se o
que Deisi Beier pretende é escrever e nos oferecer bons poemas, então não
estaremos longe de aceitar o caráter ambíguo deles como algo virtuoso. Isto é,
como defende Décio Pignatari, um bom poema nos dá a impressão de que fala de
tudo e de nada ao mesmo tempo. Em poesia tudo é evocação e elipse. É sugestivo que, em um livro que à primeira
vista se funda nos transes imprecisos do eros,
a ocorrência da palavra “amor” seja tão escassa. A palavra aparece meia dúzia
de vezes e, na metade dos casos, em forma adverbial. O fato de Cais
do alheio negacear seus significados e procedimentos (verso e prosa, desejo
e morte, corpo e remorso) fortalece a possibilidade de a poesia de Deisi Beier
se revelar ao leitor com esse caráter fugitivo de uma livre educação dos cinco
sentidos, educação estético-sentimental em sentido forte, porque pressupõe a
colaboração ativa e não tutelada do leitor-fruidor. Se a experiência vivencial
(o alheio) e afetiva (partir e chegar) se apresenta aos nossos sentidos e à
nossa compreensão de um modo tão complexo e excruciante, então é essencial que
o poema não seja menos do que essa imagem. E é precisamente isto o que nos
ensina – mas como se não nos ensinasse – a poeta de Cais do alheio.
[1]
Ronald Augusto é poeta, músico,
letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya
(1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No
Assoalho Duro (2007), Cair de Costas
(2012), Decupagens Assim (2012) e À Ipásia que o espera (2016). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com
[2] CÂNDIDO, Antonio, 1918-2017. O albatroz e o chinês. Rio de Janeiro:
Ouro sobre Azul, 2004. p. 23.
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