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um percurso textual na ante-sala



Os poemas de Jaime Medeiros Jr parecem confirmar a opinião de um jovem romancista inglês quanto ao lugar do humor no interior de uma obra literária. Isto é, segundo o escritor, o humor é importante, mas não deve ter a prerrogativa de dizer a última palavra. Numa época de predomínio compulsório da ironia paródica, a afirmação desse romancista parece ser ela mesma um chiste de gosto duvidoso.

De qualquer sorte, prefiro dar crédito à tese do inglês e pôr em xeque, também, a norma contemporânea do cinismo risonho como forma de abordagem dos nossos dilemas. Na leitura desse pequeno e complexo conjunto de poemas, intitulado Na ante-sala, pude identificar uma inquietação similar.

A linguagem abrigada entre as capas do livro de estréia de Jaime Medeiros Jr se desenha sobre uma seriedade (ou gravidade) fugidia; felizmente, ela jamais descamba para uma solenidade retórica, que pressupõe o poema como lugar do dizer altissonante. Na verdade, na primeira seção do livro, o poema - espécie de fabulação à boca pequena negociada e negaceada com o silêncio - já é meditado por Jaime Medeiros Jr como o locus amoenus através do qual o vivido é re-apresentado na tranqüilidade da linguagem. O visto e o imaginado se confundem. Portanto, o poeta constrói esta gravidade necessária; ela não assoma assim à toa. Ou seja, ela nasce dos efeitos de linguagem. Os poemas de Jaime Medeiros Jr estão voltados para a substantivação, no sentido em que há neles uma tensão rítmica e discursiva que chega ao seu termo de solução e calma quando o leitor vê aflorar, por fim, o vocábulo-sintagma substantivo, razão de ser e objeto do seu desejo de linguagem. Vejamos a seguinte estrofe do poema que dá título a seção de abertura do volume:

mangueira, caqueiro
abacateiro, pereira
laranjeira, limas e maracujás
todos serenos amparos do orvalho
da noite em breu
mãe dos ratos, gambás
ou mesmo do gato do mato
que certa vez apareceu por lá


O eixo rítmico da estrofe repousa sobre o verso (um decassílabo) "todos serenos amparos do orvalho", que interrompe a seqüência enumerativa onde são apresentadas as árvores frutíferas, seres mergulhados na serenidade da noite. Serenas criaturas orvalhadas, recuperadas ao "breu do tempo", ao ritmo do tempo. Promessa de linguagem entre prosaica e prístina; memória feita de consonâncias e assonâncias.

Na seção "Meio-sonetos", Jaime Medeiros Jr, segundo certa ortodoxia acadêmica, comete um crime de "lesa fôrma". O poeta submete ao seu fôlego o poema lírico de forma fixa surgido no final da Idade Média e composto de 14 versos, reduzindo-o à metade. Jaime propõe para a composição poética mais praticada de todos os tempos o seguinte esquema estrófico: dístico-terceto-dístico. O poeta se decide pelo uso dos versos brancos, isto é, não rimados. Desde o seu surgimento até agora, os compósitos métricos e rímicos do soneto continuam quase os mesmos. No entanto, o que muda, e mudará sempre, é o tom e a sintaxe. Por outro lado, não se deve perder de vista as conflitantes perspectivas de valor que discutem sua eficácia estética dentro de um processo histórico-estilístico marcado às vezes pelo resgate, outras vezes pela ruptura com os modelos consagrados. Jaime Medeiros Jr se inclina para algo que é mais uma experimentação do que uma cisão com a tradição.

Em termos métricos, os meio-sonetos não se pretendem exatos. Assim, o que aparentemente indicaria um impasse, se converte em vantagem porque semelhante imprecisão no tocante ao balizamento do metrônomo, confere a estas peças uma sintaxe contemporânea: elipses em fuga. Poder-se-ia dizer que o poeta simula uma batida metrificada por meio de uma dicção que se constitui no intervalo entre a versificação tradicional e a "música sem-versista" das vanguardas. Notar no poema o detalhe da precipitação vertiginosa de enjambements como que exigidos pela estrutura paratática e interpolativa do discurso:

em meio a face superior da lata um anel
que em premidas circunstâncias abre, liberta

o que em amarelo quase âmbar de se
amar, tolda em leve o que antes era
a transparência vazia que se umedeceu

e se esfria e escorre num gole bem doce e
fundo na boca por entre rima, língua e céu

Verdadeiros takes de linguagem "tirando o foco" (o conteúdo ou o assunto) do discurso. O enunciado-verso se ergue - se esboça como onda -, enquanto se dobra sobre si mesmo, e a seguir se anula quando acaba no branco da página por onde começa nossa leitura tateante, cette blancheur rigide como escreveu Mallarmé.

Já penetramos o "cinema em prosa" do terceiro movimento de Na ante-sala. Abrimos o "Caderno de cinema" de Jaime Medeiros Jr. Aqui, lemos e fruímos em travelling as suas imagens de formação: a música calada, o livro mudo das sombras que se movem. Breve paideuma de diretores-poetas que compõem elisões de movimento e metáforas de luz para o indizível, para o eidos do poeta:

colisão
de sombra e luz
acidez
torna sol em preto e branco

A seção derradeira do livro de estréia de Jaime Medeiros Jr intitula-se "Na ante-sala". O livro principia por meio de um simulacro de encerramento. Um acabar-começar do decurso textual. Alusão ao lance inaugural: o que surtirá desse gesto em direção ao leitor sem rosto? Chance e escolha submetidas à duração da recepção e à recepção como crítica (corrosão ou não) do tempo histórico. Mas, o que importa é que o livro de Jaime Medeiros Jr se publica na hora precisa do percurso sempre impreciso dos fazeres poéticos. Coisa rara entre os de nossa geração de adultescentes, as mitologias e o escopo-pensamento via linguagem do poeta estão plasmados. Jaime não é jovem nem velho, não chega cedo nem tarde: está em processo, ou no lugar requerido pela idade da sua linguagem. Sua poesia e o leitor agora se encontram, é "O romper do ovo":

repentes
híbridos
de memória
e fala
rompem claros de tempo
palavra pensa
ao fundo
des-
água em fados

depois
argúi algum pobre diabo

inda
haverá
algo
infinito
e pronto
pra se amar?




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