Sergio Medeiros considera a
floresta um totem, outro totem referido e reproposto via linguagem em sua
poética é o bafo do verão, bem conhecido dos brasileiros e experimentado como
epifania pelo autor em algum ponto ignoto do Mato Grosso do Sul. Na nota de
introdução à obra o poeta explica que aprendeu com os bororos a “cultuar
infinitos totens: o totem-rio, o totem-larva...”. E esse aprendizado, conforme depoimento de Haroldo de Campos
em entrevista, é que confere a Sergio Medeiros esta condição ou o encargo de
sonhar, de fabular pela tribo (nós leitores?) os sonhos em que nos reconhecemos
ainda que, às vezes, pelo avesso. Com efeito, na primeira seção de Totens Sergio Medeiros se encarrega de
formular sua colagem ficcional vertida em uma série de narrações bastante
imagéticas por meio da lógica fabular que inere aos sonhos. Em outro
hemisfério e cronologia o poeta W. H. Auden, ao alcançar a maturidade – felizmente
não amortecida –, julgou importante enveredar por uma poética do numinoso, da
reverência a totens – seres sacros – não ortodoxos porque identificados a
biografemas.
Auden, usando os conceitos de
“imaginação primária” e “imaginação secundária”, extraídos de um estudo de
Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), argumenta que a única preocupação da
imaginação primária são os seres sagrados, refere também que em relação a eles
não há escolha, há antes um encontro; a imaginação primária é reativa diante
dos seres sagrados, ela apenas se precipita, comovida, se submetendo a uma
impressão, legada pelo ser sagrado, que indica um significado importante, mas
indefinível. Vejamos este trecho:
Tem-se
a consciência de que um fenômeno, específico, está carregado de significado
universal. A mão que acende um cigarro é a explicação de tudo; o pé que desce
do trem é o pilar de toda a existência... dois leves passos de dança de uma
menina parecem traduzir tudo o que já se tentou expressar... mas dois
silenciosos passos de velho são a linguagem do próprio inferno. Ou o inverso.[1]
A imaginação primária é passiva e
o ser ou evento sagrado lhe exige reverência ou temor. Já para a imaginação
secundária importa a escolha, a decisão valorativa. Diante desta imaginação o
sagrado e o profano, o útil e o fruível, tornam-se relativos e relacionais; situar-se,
ainda que parcialmente, se converte numa necessidade para a imaginação
secundária.
Mas voltemos à perspectiva da escrita de Totens. Sergio Medeiros não pretende, naturalmente, ensinar ninguém
a prestar idêntico respeito aos totens que animam seu fabulário. Afinal, nem
todas as imaginações e leituras reconhecem ou se convertem aos mesmos
totens-seres ou eventos sagrados. O leitor se situa em uma zona liminar onde sua
irredutível imaginação primária se relaciona com sua necessária imaginação
secundária produzindo esta forma de leitura, de um lado, sobre os ombros do ego scriptor e, de outro, de lápis em
punho em atenção ao desejo de significado do leitor ele mesmo.
Assim, estas narrações, estes poemas, enfim, as formas de
linguagem que presentificam tanto os totens de Sergio Medeiros, quanto os numes
de W. H. Auden, resultam em manifestações indiciais de divindades e
mitologias em estado de comunicação com o contingente de nossas leituras
precárias. E não é por outra razão que levamos em consideração aqui mais o
apetite transgressor como estratégia para produzir know-how inventivo do
que a possível iluminação advinda do contato com a memória deste ou daquele
totem-nume em particular.
Por paradoxal que pareça a
recriação – em sentido forte – dessas miraculous
creatures of hush (verso de e.e. cummings adaptado livremente) só se cumpre
a contento se o caráter emprestado a esta mesma recriação não desprezar uma
alta dose de irreverência: sucessivos lances linguísticos em perspectiva
transgressora.
De outra parte, também se pode
aventar a interpretação de que Totens de
Sergio Medeiros, o livro, ele mesmo, representa um nome-suma a abrigar dois
totens de linguagem, ou seja, temos a conjugação de duas faturas escriturais
reunidas entre as suas capas, Enrique
Flor (“em linha vizinha à prosa”) e Os
eletoesques (notar o vocábulo “esqueleto” talvez pluralizado, as letras que
se acham sacrilegamente embaralhadas; enfim, já no título se denuncia o
estranhamento característico da – ou mais tolerado na – poesia).
Algumas anotações sobre Enrique Flor. O registro, a forma base persistente (nutrimento de
impulso) para a narrativa de Sergio Medeiros é o romance ou um breve take do livro infinito Ulysses de James Joyce. O estranhamento
discursivo levado a efeito nas peças de Enrique
Flor – nos episódios protagonizados pelo músico e seu órgão ambíguo – faz
remissão à figura de Henry Flower,
essa espécie de persona de Leopold
Bloom. Afivelando dicção atribuída a Henry Flower, Bloom, imerso em uma preguiça
florestal (sono vegetal imposto pelo bafo das temperaturas elevadas?) excogita
o teatro vertiginoso de um matrimônio com árvores. O torpor langoroso da
imaginação de Enrique Flor, o músico excêntrico imerso em matas e matagais,
contamina e determina toda a mise-en-scène
proteica (na acepção que adjetiva o que apresenta muitas e variadas formas; multiforme,
polimorfo; também relacionado a Proteu, deus marinho que pode assumir
diferentes formas), assim, damas (que “provinham todas de troncos
antigos”) e cavalheiros (“distintos com charutos que eram decerto raízes
tortas”) se metamorfoseiam em criaturas vegetais desde a raiz de seus nomes: Mr Henry Flower, Mrs Rowan Greene, Miss
Larch Conifer, Miss O. Mimosa San, Miss Rachel Cedarfrond, Misses Lilian and
Viola Lilac...
Mesmo que Sergio Medeiros esteja
convencido de que Enrique Flor é um
livro de poesia, de poemas, já que, afinal de contas, todo o conjunto se
encontra, ao menos nominalmente, dentro dos limites deste gênero – e a capa,
inclusive, cumpre função afirmativa ou paratextual quanto a isso, pois abaixo
do título da obra lê-se “poesia” –, mesmo assim, não seria nem um pouco
descabido apresentar o livro de abertura de Totens
como um experimento em prosa; e experimento relevante porque crítico em seu paródico
passar em revista uma camada de signos do romance Ulysses. Enrique Flor se
desenvolve em uma prosa não ortodoxa, prosa que fizesse fronteira com a
antitradição do prosador irlandês de ruptura com a narração. A noção de que não
se pode mais simplesmente narrar, embora a forma ficcional suponha a narração,
está em discussão em todos os fragmentos de Enrique
Flor. Sergio Medeiros projeta de modo corajoso e necessário sua prosa como
um epos cujo enredo preguiçoso e in absentia se dissipa ante o menor
esforço do leitor na direção de estabelecer nexos de causa e efeito; a ligação
entre as cenas e os insolventes acontecimentos é paratática e parentética. Reverente
com relação ao totem-floresta, o autor condensa a aventura arrebatada do
protagonista através dos esgalhos do sex
appel vegetal, através de diversos espaços ambientais e efeitos
propiciatórios de linguagem numa violenta elipse que se traduz na epígrafe
emprestada a Stéphane Mallarmé e que diz: “Atlas,
herbiers et rituels”. Mas outra epígrafe – também do simbolista francês –
que viria a calhar como preparação à leitura de Enrique Flor, agora em atenção ao totem-texto, seria este fragmento
“[...] la fiction affleurera et se
dissipera, vite,/ d’après la mobilité de l’écrit [...]”.
Mas ainda há uma questão controversa. Infelizmente
Sergio Medeiros cede à rotina envergonhada da maioria dos poetas – quando na
verdade não precisaria – justamente no momento em que resolve chamar a
provocante prosa de Enrique
Flor de poesia. É que a única
vantagem de tal decisão acaba por ser a ratificação de dois estereótipos num só
golpe. A saber, que, de um lado, apenas à poesia seria facultado o direito de
trair o signatum (o aspecto inteligível)
em benefício do signans (a
materialidade do texto); e, de outro, que não se poderia
solapar à prosa o preceito épico da objetividade e de certo verismo, já que, de
acordo com o senso comum canônico, a prosa daria conta da realidade melhor do que
a poesia. É como se a partir de um mecanismo automático de
“controle de qualidade”, alerta à pureza dos gêneros, qualquer experimento com
a prosa que desbordasse, para mais ou para menos, de sua consagrada ordem unida,
fosse conduzido sem chance de recurso para as bandas da poesia. O escritor
antilhano Édouard Glissant questiona esta disjunção simplista entre os gêneros,
pois do seu ponto de vista podemos perceber o quão lucrativa e frutuosa foi tal separação em termos das literaturas
ocidentais. Glissant vislumbra um espaço de maior mobilidade
discursiva ao escritor, pare ele “a prosa pode ser sonhadora e cair em uma
espécie de tormenta, de torneio, de embriaguez, sem deixar de ser significante”,
isto é, sem deixar de ser, ainda que num jogo de simulação e de dissimulação,
mais respeitosa no seu trato com a realidade.
O interessante é que, ao menos na
primeira parte de Enrique Flor, a
paginação da obra mimetiza o aparente conflito prosa/poesia. À esquerda temos os
textos em prosa onde, no geral, o tom é do comentário quase noticioso;
colunismo social, colunário vegetal; e à direita, sempre em itálico, os poemas,
as peças musicais transcritas, trasladadas à ficção. Páginas com-itálico e
páginas sem-itálico que fundam espaços gráficos distintos. Exemplo de página
com-itálico (poema):
a
pedra lisa tem
escamas
os
olhos da estátua no jardim se viraram para dentro sobre os lábios fechados
calmos
Do outro lado textos encomiásticos em pauta paródica, notas sociais. Dando
continuação a um exercício de estilo à maneira de
Joyce, Sergio Medeiros expropria a retórica do colunismo,
da coluna social, discurso parajornalístico que consiste em reunir informações
leves e levianas (chamar de notícias seria demasiado) sobre personalidades ou
celebridades da autoproclamada alta sociedade. Exemplo de página sem-itálico
(prosa):
aspirando e mastigando sedosas
pétalas amarelas e vermelhas que as abas dos chapéus haviam introduzido
delicadamente e repetidas vezes na sua boca o senhor Enrique Flor cantarolou
como pôde duas árias ambas tipicamente suas
Como já referimos no início desta
abordagem, o segundo totem-linguagem do conjunto Totens intitula-se Os
eletoesques. Neste livro o totem em causa é o bafo de verão, a luz
abrasiva. A severa pobreza de tal claridade investe contra os contornos do
mundo, borrando-o para que o totem eletoesque
se revele, rente ao texto, em toda a sua indecidível contundência de transe
ritual:
a palma verde se mexe bruscamente
como um pescoço suado de cavalo
a espantar enxames
de moscas
A contrapelo de toda e qualquer
digressão sabida, nostálgica de uma eloquência infensa à inflação semântica,
Sergio Medeiros avança na direção da conquista do impreciso (seus seres ou
eventos sagrados, biografemas) através de um imagismo ao mesmo tempo jubiloso e
medido. Sergio, atento para que a figuração não desborde em comentário, estanca
o fluxo da fanopeia no ponto decisivo, exemplo:
vestido de grená
o atleta albino caminha ao lado
do mato verde
escurece
Não há a menor sombra ou sobra de tique sentencioso em seus versos, aspecto,
diga-se de passagem, tão comum em muitos praticantes pretensiosos da poesia
contemporânea onde o tropo, enquanto elemento compositivo (usado evangelicamente
para fazer o leitor “pegar delírio”, Manoel de Barros dixit), se enrama como um arabesco a meras tiradas oraculares toleradas
pela preguiça. Por isso mesmo Sergio Medeiros investe mais na imagem pura, imagem
discursiva, mais mental (ideogrâmica) que corpórea, do que nessa metaforização
perdulária que, não raro, assume o posto de elemento kitsch da função estética da linguagem. Espécie de salvaguarda do
poeticamente correto de que se servem poetas de segunda linha, fetichistas do
rizoma, canalhas filosofantes e xamânicos, diluidores, hoje, de Deleuze e
Guattari.
Para divisar esse bafo, esse
solaço espesso que rapina a paisagem, o poeta, por meio de inúmeras miragens de
linguagem, escreve “de óculos escuros”. E o herói-eletoesque desse périplo periférico onde a luz brasileira se arma
de latas ardidas à margem das vastas cidades é o divino andarilho albino: face cambiante cujo pestanejar
afogueado avança em redemoinho. A “pele de cal” sob o sol. As imagens volitando
em sua ideia: presenças e aparições sonoras. A linguagem do poema tremula ao
roçar a respiração, o hálito elétrico desse retorcido eletoesque.
[1]
AUDEN, W. H. Fazer, saber e julgar – Aula inaugural dada na Universidade de
Oxford em junho de 1956. Florianópolis: Editora Noa Noa, 1981. p.: 43
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