Denise
Freitas e Ronald Augusto[1]
Desde o título, Tambores pra n’zinga[2],
até o que, feito um farfalhar de sentidos, se desprende dos poemas enfeixados
entre suas capas – poemas que, às vezes, “dizem” mais o rumor de um discurso do
que uma música em devir – nos tornamos mais ou menos cientes do que o livro de
fato comunica? Não. Pois o que se dá e o que não se dá pelas forças das
relações estabelecidas, o que não cabe durante nem após a expedição de
conquista da leitura, enfim, mesmo ao afortunado intérprete a quem os sentidos
de Tambores pra n’zinga se
presentificassem na figura do compreensível, o que a linguagem de Nina Rizzi
comunica, felizmente, é muito pouco. Em poesia a coisa que interessa não diz
respeito à comunicação, o que vale a pena nesse jogo jamais é enunciado.
Mas tudo isso representa uma
parcela dessa interpretação que se precipita agora mais para as senhas
requeridas ao apetite do impreciso. A propósito disso, a pluralização dos
advérbios quando e quase e do pronome indefinido tudo, que servem para intitular as três
seções em que se divide o volume, intensifica essa percepção de Roman Jakobson
– na abordagem do fenômeno poético – segundo a qual “a ambiguidade se constitui
em característica intrínseca, inalienável”[3]
da poesia. “Quandos”, “Tudos” e “Quases”: tradições e poéticas em anamorfose, e
também tempos e espaços.
Por outro lado, o que nos
revelaria a busca pelo preciso em
Tambores pra n’zinga, a busca pelo signatum
(o aspecto inteligível do signo) que diz os seus nomes? Antes cabe lembrar que
o conteúdo (plástico e maleável como o desenho de uma ideia) é uma função da
forma, essa linguagem de poucos instantes em situação de poema. Em Tambores pra n’zinga o leitor usufrui de
ritmos vários. Já nos títulos dos poemas a apresentação de rondas, árias,
cantigas, baladas, pastorais, solos, adágios, sambas, jongos, maracatus, formam
algumas das referências musicais presentes na obra. Fundamentais para qualquer
ritmo (o que imediatamente os inscreve dentro das fronteiras da poesia),
alternância de batidas, permuta entre acentos fortes e fracos, momentos de
tensão e suavidade, capricho e descaso são levados a efeito por Nina Rizzi em
sua recente publicação. Muito bem, a persona
de Tambores pra n’zinga se
autoproclama “mediterrâneo-africana”. Seus poemas que alternam e alteram (a
sonoridade diz respeito ao verbal) essas formas musicais inventam um feminino
mais metonímico que metafórico, mais revolto que revoltado; e a cobertura do
livro, como paratexto, iconiza à maravilha
tal propósito.
Dentre outras
características a destacar encontra-se a consciência da oscilação, inerente
mesmo ao próprio som e que se estende para o texto. A autora sabe que pouca
coisa sobra de espanto em oposições e contradições, pois há bastante tempo elas
denotam peculiaridades indistintas da condição
humana, assim, sabe também que não as poderia negar; mas as dispõe sem
novidade, quase as buscando numa ideia de passado suficientemente conhecido e
até mesmo repetido: “transbordam em mim reminiscências:/ águas que me secam,
redundâncias de me sentir (...)”[4].
Nina reconhece, ainda, os limites da multiplicidade contida na acepção da
controvérsia, e o faz quando salienta “(...) ninguém chega a ser dois nessas
andanças”[5].
Entretanto, certo estranhamento discursivo, a inutilidade fruível
da materialidade textual e os escapes intertextuais levam Nina Rizzi a versos
desobedientes, a um, por assim dizer, “sentido último” do que quer que seja.
Alguns excertos: “no peito, aquela coisa de moer cana”[6];
“sou grande, todo o largo./ imensa pra qualquer canto”[7];
“o alicate revela o ar cansado, hostil”[8];
“só um gosto malamaiado, doce/ das coisas primitivas”[9].
Sem
pretender antecipar o trabalho do leitor, Nina Rizzi opera nos poemas suas
próprias explicações sobre o que acabou de sugerir, só que para isso serve-se
de uma incompatibilidade entre as metáforas; nem a primeira sentença se
resolve, nem a segunda, pois a explicação
presta-se mais à divergência do que à composição harmoniosa do sentido, a primeira estrofe do poema “composição cor
de wiskhi à zero hora” caracteriza essa situação, “há dias em que ela se
derrama sobre mim/ como se estivéssemos grudadas, uma sombra na água ou pedras
nos rins(...)”[10].
Depois da falsa certeza do
auxílio, a licença. Num dos poemas a autora assevera “(...) é outubro e eu
danço pra mim”[11].
A aparência do descarte, ou da dispensa do público e, por conseguinte, do
leitor e de suas expectativas, contraria o lugar-cristalino (aparentemente
alargado pelas publicações de poesias
cada vez mais inconsistentes, para dizer o mínimo) da poesia como extensão
daqueles velhos conhecidos de todos, os sentimentos.
Apesar de carregar boa dose de intimismo, não o faz de maneira passional ou
cedendo aos humores irrefletidos, esses que são parte da causa da arte ter sido
circunscrita na esfera contemplativa e emocional do prazer, e afastada da reflexão. Aqui, furtamos de Paul Valéry a
afirmação de que “a obra de arte me dá ideias, ensinamentos, não prazer”[12].
Todos esses traços construtivos que, em fim de contas, fazem
menção tanto ao ficto quanto ao histrio (fingidor, ator de mimos), pois
simulam e jogam com a representação e o representado, se projetam, na dicção de
Nina Rizzi, sobre a convenção do hister-o
(do gr. hustéra,as “útero”), delimitando-lhe nova faixa
de leitura. Isto é, graças à consciência de formas e de linguagem, Tambores pra n’zinga consegue acrescentar uma importante disrupção nessa restritiva
“poética do feminismo” que, em muitos casos, só tem servido para sustentar uma
espécie de apologia histérica da literatura de viés meramente reativo à
naturalização da misoginia no interior dos cânones.
[1] Denise
Freitas nasceu em Rio Grande (RS) em 1980. Escritora e professora de
história; é autora de Misturando Memórias
(2007), Mares inversos (2010); está
entre os autores que compõem a Antologia
poética: Moradas de Orfeu (Letras Contemporâneas, 2011); possui publicações
em diversas revistas e sites literários, dentre os quais, Revista Sibila,
Germina Literatura, Musa Rara, Autores Gaúchos, Revista Modo de Usar. Ronald
Augusto nasceu em Rio Grande
(RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É
autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá
de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de
Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com e
é diretor associado do website WWW.sibila.com.br
[2] RIZZI, Nina. tambores pra n’zinga. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2012.
[3] JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. São Paulo: Editora Cultrix, s/d. p. 128.
[4] RIZZI, Nina. Op. cit., p. 45.
[5]
Id. Ibid., p. 74.
[6] Id. Ibid., p. 60.
[7] Id. Ibid., p. 55.
[8] Id. Ibid., p. 88.
[9] Id. Ibid., p. 91.
[10] Id. ibid, p. 48.
[11] Id. ibid, p. 56.
[12] CAMPOS, Augusto. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Editora Brasiliense,
1984. p: 77.
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