Digamos que em um
primeiro momento a perspectiva poética de Álvaro Santi se avizinhe de uma
angústia drummondiana, afinal, o título da reunião enseja, ainda que de maneira
apressada, tal leitura. Contudo, o motivo que informa o poema “O Lutador”, de
Drummond, cujos primeiros versos dizem: “Lutar
com palavras/ é a luta mais vã/ entanto lutamos/ mal rompe a manhã”, motivo
do poeta ensimesmado, considerando os limites e as possibilidades expressivas
do seu sistema de signos, não é propriedade do poeta de Itabira. Mais do que
uma tópica assinalável em diversos momentos da tradição, onde escrever sobre
escrever acaba por se consagrar como mais um “assunto” para a fatura do poema,
trata-se, antes, para o poeta, de sua conquista da consciência de linguagem e,
da mesma forma, da noção da fungibilidade da poesia enquanto constructo
tipicamente humano. A linguagem de poucos instantes da poesia moderna,
relativamente à língua de todos os instantes da prosa, não se presta mais à
imagem do monumento destinado a durar até o fim dos tempos.
A presente reunião constitui
um recorte de vários poemas extraídos das seguintes obras: Viagens de uma caneta por meus estados de espírito (1992), O primeiro anel (1996) e Dança das palavras (2000). Além disso,
boa parte da antologia é formada por um inédito conjunto de poemas em que
Álvaro Santi vem trabalhando desde 2002. Este conjunto, intitulado Luta + vã, acabou por nomear todos os
poemas enfeixados nesta antologia representativa do percurso textual do autor
que abarca um arco temporal da quase três décadas, pois há poemas que foram
redigidos ainda nos anos 80. Luta + vã
começa pelos inéditos e dispersos retroagindo até o livro mais remoto, Viagens de uma caneta por meus estados de espírito.
A opção pela ordenação “às avessas” não indica um capricho. O próprio autor
preferiu dispor nessa ordem sua produção poética. Além do mais, sem desprezar
outros exemplos que apontam para a mesma direção, João Cabral de Melo Neto uma
vez já havia organizado seus livros seguindo esse critério, confira-se, a
propósito, a obra Poesias completas
(Editora Sabiá, 1968). De outra parte, tal arranjo se aproxima o quanto
possível do sentimento de todo criador com relação ao seu afazer que, nos
parece, o predispõe sempre no sentido de chamar a atenção para a sua produção
mais recente.
Ao mesmo tempo em Luta + vã não se pode perder de vista o
consistente percurso poético de Álvaro Santi, ou seja, o que ele realizou até
agora e que se projeta no que vem realizando e realizará. Assim, a escolha dos
poemas aqui presentes se afina com a divisa poundiana do make it new,
que diz respeito ao renovar, à recriação e/ou à recuperação da parte viva de
determinado legado, enfim, tentamos proceder a uma revisão de dados e formas
relativos à linguagem do poeta com vistas a propor tanto para o leitor mais
recente, como aos iguais, o passado novo de novo desse percurso textual.
O primeiro verso do poema que abre o livro diz “Que posso eu cantar de novo?”. O autor
enfrenta já de saída a questão que define o gesto poeticamente crucial, ou
seja, que o poema, produto desse gesto, é um sistema defectivo que tanto
inaugura quanto exaure uma chance de linguagem. Por esta razão o poeta jamais
terá certeza de que seus esforços serão bem-sucedidos, quanto mais se alcançará
fazer algo que seja novo a ponto de redefinir o xadrez da tradição em
movimento. Não obstante, ele sabe, mesmo que precariamente, que dessa fatura a
que se dá tanto em troca de tão pouco, brota, eventualmente, “entre as pedras,/ a mais teimosa das ervas”.
Assim, se o fracasso ou a deriva semântica (o sinal de menos da poesia) é
inerente ao poema, esse ser de linguagem, que importa, em fim de contas, o novo
em si mesmo? O novo, como escreve o poeta, pode ser “...o Inverno [que] já vem/ exato
e esperado”. O novo pode não passar de mera contrafação.
A leitura de Luta +
vã responde à maravilha a uma sensação que há algum tempo tem me
acompanhado com relação ao
conceito de invenção ou à imagem do novo. Embora a invenção possa colaborar
numa eventual definição que se tente a propósito do gênero poético, confesso
que já não tenho um apetite tão grande para, digamos assim, me solidarizar de
modo indiscriminado com os seus adeptos. Aqui e acolá a todo instante se
publicam livros que pretendem reunir o melhor da invenção surgido na última
estação. Em poesia a invenção (o novo) virou commodity; uma sorte de bolha especulativa.
Mas poesia não é apenas invenção. Em muitos poemas velhos a beleza está mesmo
nessa condição do texto que envelheceu onde podia envelhecer. Em poesia a
reiteração talvez seja, inclusive, mais valiosa que a invenção.
Em função disso, Álvaro
Santi escreve à antiga? A questão não deve ser colocada nestes termos. Mas se a
resposta à pergunta for afirmativa, “escrever à antiga” talvez queira dizer
apenas que o poeta ainda ache interessante experimentar a divisa da tradição
que estabelece para o artesanato ou para a “oficina irritada” do fazer poético
um “repetir para aprender” em direção as bordas de um “aprender para criar”. O alto modernismo, cujo
principal valor é o da liberdade de criação, conquista esse objetivo revisando
e revisitando de modo vivo a gaveta mortuária do passado. Álvaro Santi é filho
desta tradição que impõe traços verticais à sucessão assinalando nela o que
interessa para o presente. Segundo Walter Benjamin, Baudelaire (o inventor da
modernidade) reivindica para a arte moderna uma “força de expressão”
característica da antiguidade e essa força se limitaria à construção.
Por estas razões a
poesia de Álvaro Santi (seu ansioso e ocioso constructo) toca num aspecto
estético crucial do nosso tempo. Sabemos que a antinomia entre novo e velho é
de fundo modernista. De outra parte, a contemporaneidade pós-moderna dispõe
deste oximoro de modo diferente. O novo e o velho convergem para um presente
sem margens, eterno, que os anula ou neutraliza. O tempo se espacializa, não é
mais sucessão; é mosaico simultaneísta. Assim, não se concebe mais o novo como
reação ao convencional, ao perempto; o novo – agora um fait accompli – se detém
apenas como mais uma possibilidade performativa, tão válida como qualquer
outra.
No entanto, se num passado nem tão
recente não surpreendia o repúdio associado ao medo do novo, hoje a leniência
com a ignorância torna aceitável o medo do antigo, ou mais precisamente, do
antigo que à sua época não ligava importância à própria efemeridade. O antigo,
com data e circunstância, não o retrô ornamental. Há uma revolta, ou melhor,
uma impaciência preguiçosa com o antigo, pois de certa forma o antigo – que
supõe repertório e cultura como anticorpo à barbárie – que apela ao sentido
forte da noção de tradição agora desprezada, paradoxalmente, não se refere mais
à redundância nem à informação conhecida; o antigo, em face da anomia, se
converteu num estranhamento. Um desaforo menos novo que irritante; uma
distinção optativa.
E o que dizer sobre
o desaforo irritante dos sonetos de Álvaro Santi? O poeta ajusta com
grande plasticidade o seu fôlego ao poema lírico
de forma fixa surgido no final da Idade Média e composto de 14 versos. Álvaro
parece bastante à vontade com a composição poética mais praticada de todos os tempos
e cujo design, quando manipulado por
um poeta atento ao tempo e ao som – e é o caso do poeta em tela – ainda se
mostra eficiente. Desde o seu surgimento até agora, os compósitos métricos e
rímicos do soneto continuam quase os mesmos. No entanto, o que muda e mudará
sempre é aquilo que diz respeito ao tom, ao ritmo e à sintaxe. Por outro
lado, não se deve perder de vista as conflitantes perspectivas de valor que
discutem sua eficácia estética dentro de um processo histórico-estilístico
marcado às vezes pelo resgate, outras vezes pela ruptura com os modelos
consagrados. E neste aspecto, Álvaro Santi, aprendeu para criar, deixando para
os menos aptos a repetição com vistas ao aprendizado.
Esse traço por assim
dizer “antigo” em Álvaro Santi potencializa sua condição de “lírico na
periferia do capitalismo” – relevem o trocadilho que, em breve, se justificará.
A condição de lírico com relação tanto a certo amor cortês que vislumbro em
seus poemas, quanto no que respeita a sua interação crítica com a sociedade e o
arco ideológico que a abriga, se manifesta por meio da tópica catuliana do odi et amo. Essa é a contradição do
lírico moderno que não pode mais prescindir da ironia, pois ele sabe que o
“lirismo não é libertação”. Álvaro Santi não se entedia com os acontecimentos, mas sua
revolta se dá pela estratégia da contenção. O poeta, ao situar-se no centro da polis,
pretende conquistar uma linguagem que não servirá para ser fidedigna, nem para
representar um mundo prefixado e funcional, embora não recuse por completo seu
pertencimento a um todo cultural e social que, para o bem ou para o mal,em
várias ocasiões o atravessa e anima.
Resta
ainda comentar a dicção lírica de Álvaro Santi que se limita mais com a música
e a canção do que com a poesia do suporte papel. Cumpre mencionar que o soneto,
composição cara ao poeta, em seu lastro etimológico indica ser de origem provençal onde se conhecia o sonet, espécie de canção, de poema; também
no francês antigo há o registro de sonet, cançoneta, diminutivo de son (som), mas na acepção de “ária
de música” que era acompanhada de versos. De outra parte, Jorge
Luis Borges afirma que “Um verso bom não pode ser lido em voz baixa - ou em silêncio. Se
isso for possível, então, o verso não vale a pena, pois um verso sempre exige
sua pronúncia. O verso nos faz lembrar que antes de arte escrita foi uma arte
oral: o verso nos lembra que inicialmente foi um canto”. E é nesta acepção mais
remota que utilizo o qualificativo lírico
para me aproximar da música verbal contida em Luta + vã: cada peça realizada por Álvaro Santi parece uma
composição poética para ser cantada com acompanhamento de um instrumento musical.
Ao contrário do
poeta juramentado que, seguindo a lição de T. S. Eliot, escapa da emoção para
regenerá-la na textura do poema, o compositor popular, ao contrário,a entende
como a razão de ser do seu refinado artesanato. É que o músico (ou o compositor)
é uma artista não verbal. As palavras contam menos que os acordes. A música
fala mais à emoção do que à razão. No samba “Festa imodesta”, de Caetano Veloso,
essa situação é demonstrada à perfeição, diz assim a letra: “E acima da razão a rima/ e acima da rima a
nota da canção.” Por isso, em Luta +
vã, o melodioso às vezes parece que vai entornar em meloso, em “derramação”.
Por isso o indecidível odi et amo há
pouco referido. O poeta experimenta o desdém e a fissura, a corte e o negaceio
com relação às suas duas musas: a mulher e a polis. O poeta “faz amor até mais tarde” enquanto “escuta a
correria da cidade”. É como se a comovida e comovente poética de Álvaro
introduzisse uma mensagem paralela à conhecida divisa de Maiakóvski, mensagem que
dissesse mais ou menos assim: sem afeto revolucionário não há poesia
revolucionária.
Não obstante certa
melancolia um pouco à maneira de Laforgue e um pouco de matriz do samba-canção,
Álvaro Santi não faz coincidir sua sensibilidade poética (e isso sem o menor
detrimento da consciência social e crítica que manifesta sempre com elegância)
com a visão adorniana segundo a qual a poesia teria perdido a razão de ser em
face das barbáries perpetradas por nossa civilização em meados do século
passado.
Luis Augusto Fischer no prefácio a Dança das palavras (1998), livro de
Álvaro Santi, define o poeta em geral como um cara que “passa a vida tentando dizer, de um modo peculiar e
intransferível, o que tem para dizer”. De minha parte gostaria de retorquir
essa afirmação apenas em um detalhe – e por detrás deste detalhe vislumbro toda
a beleza da poesia enfeixada em Luta + vã.
Na verdade o poeta passa a vida dizendo,
de um modo singular e intransferível, o que tem para dizer. A noção equivocada
de que o poeta tenta dizer indica uma
aposta renitente na tardia dicotomia entre forma e conteúdo. Mas um poema – e
Álvaro Santi, como todo bom poeta atento ao fine
excess da poesia, sabe que um poema – é feito da mesma matéria de que são
feitos os sonhos, por isso um poema quer dizer muitas coisas e, no entanto, não
diz.
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