Sabor da crítica vadia / Cândido Rolim
Há críticos e artistas que evitam comentar
sobre seu tempo, quem sabe, aguardando a estação passar para, na carona de
alguma aprovação unânime, emitir suas impressões com base em uma opinião digna
de figurar no elenco dos juízos “confiáveis”. É na contracorrente desses
esforços débeis de consagração que atulham a nebulosa literária que alguns
pensadores, dentre eles o poeta-crítico Ronald Augusto, atentos à “fruição do
indeterminado do discurso literário”, vão revolvendo tópicos e questões
supostamente “consumados”.
Ronald é um poeta que periodicamente
realiza cursos cuja matéria prima é a leitura e a confecção de objetos verbais
(textos). Portanto, convive à exaustão com os impasses da linguagem poética e
também com os logros, as imposturas e os embustes realizados por nomes e obras
preservados pela política cultural do entorno. Não assusta que apareça em seus
artigos, aqui acolá, com virilidade nietzschiana até, detonando os ruídos solenizantes da literatura travestida
de informação e seus manjados praticantes.
Mas, abstraídos os confrontos, as perguntas
que faz, invariavelmente, denunciam a gana de extrair ou aproximar-se de uma
razão concreta, vital, táctil, nesses processos tão limítrofes quanto
interrelacionados – poesia e prosa, pintura e música, etc. – sempre em busca de
uma trama, ilusória que seja, que não se renda ao primeiro esforço-leitura.
Essa é, portanto, a imagem, ao mesmo tempo aguerrida e meticulosa, recorrente
em Decupagens assim, que traduzo como
índice de disposição, agudeza, cautela, rigor, paciência e interesse pelo que
está por baixo da superfície crespa da linguagem e, afinal, por trás de cada
processo estético: a do “leitor de lápis em punho”.
A meticulosidade fica por conta do rigor
vadio com que o crítico saboreia os limites da experiência estética
contemporânea e de períodos mal dissolvidos (o alto modernismo, por exemplo).
Esse exercício agudo de interlocução o autor deixa entrever através de figuras
que, longe de comporem um quadro de sufocante veneração (Bandeira, Borges,
Brossa, Barthes e outros) rendem ainda uma dialógica aproveitável.
Afinal, é por conta mesmo dessa iniciativa
de entreabrir a rarefeita malha intersemiótica da cultura que nos é permitido
fruir de objetos estéticos deixados ao longo do percurso. Essa, digamos,
anti-política literária, que fique claro, só provisoriamente pretende colocar
as coisas em um devido lugar (mas que lugar? – Seria, afinal, a pergunta). Sem
dúvida, o lugar desde onde é dado à arte, e à literatura em especial,
desencadear seus sentidos incompletos, suas contra-dicções.
Assim, antes de tomar pé na margem móvel de
sua provocante diversidade, tomo os presentes recortes como um raro convite ao pensamento,
à “vadia fruição do pensamento-arte”, experiência que nos permite tocar os
alvéolos da tradição literária sem pregnância nem dogmatismos. E talvez seja
essa indisciplinada deriva crítica que melhor destaque as tensões envolvidas no
objeto estético, o qual jamais descarta, de imediato, uma interferência
criativa (entre promíscua e atenciosa) que perturbe seus limites
interpretativos nem tampouco negligencie o lance racional desencadeador de um
início de intriga virtualmente inesgotável.
Afinal, é desde essa zona crítica que o
autor se mostra como um dos poucos que, atualmente, exercitam com consequente
inquietação, o processo de releitura de obras e autores que, sufocados por
mistificações simbólicas ou mal-intencionados silêncios, reivindicam ainda uma
interessante e interessada mirada. Atento a isso e a quase tudo que gravita em
torno da alta e da baixa cultura, Ronald Augusto dá conta, com sobras, desse
trânsito criativo.
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