Ronald Augusto[1]
Num ensaio muito interessante dedicado
ao poema dramático de Mallarmé L’après-midi
d’un Fauno (1865-1876) e as
sucessivas versões a que foi submetido desde sua primeira recusa para ser
encenado, Décio Pignatari aventa a hipótese de que o poeta simbolista concebeu essa
aventura criativa como uma “antiestocástica do poema”. Pignatari define assim o
processo estocástico: “uma aproximação gradativa a uma mensagem desconhecida, a
partir dos dados de um código conhecido”. Outro exemplo fornecido pelo crítico
seria o do progressivo ajuste de foco de uma imagem, o movimento de “um
desfoque máximo para um foco otimizado.”[2]
Mallarmé respondeu a cada recusa ao
poema (cuja recepção crítica censurava como peça obscura e ininteligível)
dando-lhe um tratamento sempre mais e mais distante de uma configuração apropriada
a um texto encenável. Por uma série de supressões sintáticas e lexicais o poema
foi perdendo comunicabilidade dramática e ganhando em elipse e concentração ao
nível da melopeia; em suma e, talvez, paradoxalmente, silêncios e lacunas
expressivas foram introduzidos em sua linguagem. A cada revisão Mallarmé dava
menos eloquência gesticulatória ao poema.
Se evoco a experiência de linguagem
do grande simbolista é porque me parece que a escrita poética de José Weis guarda alguma relação com essa lição compositiva que só tem em vista o sucesso
estético do poema, mesmo que para isso seja necessário enfrentar o seu fracasso
referencial. Sei que José Weis não é um poeta de linhagem mallarmaica, pelo
contrário, seu apetite discursivo (que bebe naturalmente da cachaça dos
modernistas) é mais pela mundanidade do que pelo abismo da página estéril e
branca. Seus poemas se situam numa “zona de interseção entre/ uma autocrítica e
sua compaixão”. Para Mallarmé não importa tanto a autocrítica que, para ele, seria
decorrência da própria linguagem e sua permanente condição de crise; o poema
mallarmaico é crítico e sem compaixão e quem fala através dele não é o poeta,
mas a linguagem ela mesma.
Quem fala nos poemas de José Weis?
Ele mesmo, mas através de máscaras. Sua compaixão autocrítica passa por filtros
irônicos de dicções aprendidas no contato sensível com a tradição, pois “Árdua
é a vida de um Fauno/ sem a poesia de Mallarmé/ sem a música de Debussy/ e nem
uma ninfa sequer...”. Mas a alusão a essas aparentes carências não vem à tona
do verso de Weis sem a marca do fingimento,
seus versos avançam em
imagens e ritmos coloquiais que se fazem acompanhar da marcação de um ridendo, senha de uma contida
metalinguagem a assinalar que suas palavras não devem ser levadas tão a sério.
Afastei-me um pouco do sentido inicial dessa resenha, qual seja, reconhecer
no conjunto de poemas Lenhador de
samambaias uma aplicada arte de recusas, o que, aliás, já está expresso no
poema “Intuição”, o terceiro do livro, que diz: “No caso da recusa/ ser a
própria musa/ todo bardo elege,/ com sábia devoção/ seu ideal de rejeição”. Esse
traço do percurso poético de José Weis é admirável, isto é, sua escolha por
não tornar mais adiposo o acervo imenso dos livros fáceis que se publicam a
torto e a direito, porque resolveu concentrar seu esforço reduzindo os seus
conjuntos de poemas ao que interessa. Esse
escrúpulo de publicar a qualquer custo faz com que a poética de José Weis encontre também o domínio da ética; o esperado livro de José Weis não chegou
tarde, não. Chegou íntegro, sem nódoa de barganha com a facilidade ou com o
espalhafatoso, afinal, quando assediada, edulcorada e “Encurralada, a palavra
escapa/ desaba a pretensão do poeta”.
Com efeito, junto com a admiração de muitos dos seus iguais por sua
poesia, a raridade com que essa poesia mesma aparecia ao longo desses anos, talvez
causasse, por outro lado, um secreto incômodo. Todos nós sabíamos da existência
e da qualidade dessa poesia, entretanto, frente à sua correlata escassez – seu
corajoso silêncio vizinho à esterilidade? – quem sabe quantas vezes não nos tenhamos feito
a pergunta: mas por que diabos o Zezinho nos oferece tão pouca quantidade dela?
Vinte e cinco anos de estrada e agora José Weis publica Lenhador de samambaias, um livro magro, pouco
mais que uma plaquete. Quase trinta anos se dando tanto em troca de tão pouco.
O livro tem 68 páginas, incluídas as correspondentes à apresentação de Sidnei
Schneider, ao sumário e à epígrafe extraída de Miguel de Cervantes (onde o ego scriptor de José Weis espera conquistar
através do trabalho com a linguagem a graça de ser poeta que o céu não lhe quis
outorgar). Parece até que o poeta publicou a contragosto ou, com generoso
orgulho, se deixou publicar. Para uma estreia de um poeta cinquentenário o
“sinal de menos” com que Lenhador de
samambaias se honora – se o colocarmos em relação com o perdulário das
publicações que o cercam – confirma para mim a imagem de que José Weis conquistou
para si a alegria de nos oferecer um livro que vale por todos os dos seus pares
mais ansiosos.
[1] Ronald Augusto nasceu em
Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico,
letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983),
Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004),
No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá
expediente no blog www.poesia-pau.blgspot.com e é diretor associado do website
WWW.sibila.com.br
[2] CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI,
Décio. Mallarmé. São Paulo:
Perspectiva, 1980, p: 107.
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